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18 de maio de 2015

A teoria das colheres


A Teoria das Colheres ou 'The Spoon Theory' é a analogia de Christine Miserandino (doente de lúpus) para o que é viver com uma doença crónica ou incapacidade.


A minha melhor amiga e eu estavamos a ter uma conversa, durante o jantar. Era já bastante tarde, como de costume e nós estavamos a comer batatas fritas com molho. Como é normal em raparigas da nossa idade, passavamos muito tempo no café enquanto estivemos na faculdade e, na maior parte do tempo, falamos de rapazes, música ou trivialidades, assuntos que nos pareciam muito importantes nessa altura. Nunca tinhamos uma conversa séria sobre nada em particular e ríamos durante todo o tempo.

A determinada altura tomei a minha medicação como sempre e reparei que ela me olhava fixamente em vez de continuar a conversa. Estranho. Perguntou-me, assim do nada, como era ter lúpus e estar doente. Fiquei surpreendida, não apenas porque a pergunta não era esperada, mas também porque eu tinha assumido que ela sabia tudo o que havia a saber sobre lúpus. Acompanhou-me a consultas, viu-me andar de bengala, até me viu a vomitar no quarto de banho. Já me tinha visto  a chorar de dor, que mais havia para saber?

Comecei a divagar sobre medicamentos e dores mas ela ia insistindo, sem parecer satisfeita com as minhas respostas. Sendo minha colega de quarto na faculdade e amiga há anos pensei que sabia a definição médica do que é o lúpus. A dada altura ela olhou para mim com aquela cara que todas as pessoas doentes reconhecem, a cara de pura curiosidade para saber o que ninguém, perfeitamente saudável, sabe. Perguntou-me como é que eu me sentia, não física mas emocionalmente, como é que eu me sentia com o facto de estar doente.

Enquanto tentava recuperar a minha compostura, olhei para a mesa à procura de ajuda ou direcção, ou, pelo menos a tentar ganhar tempo para pensar; procurava as palavras certas. Como respondo a uma questão para a qual nunca encontrei resposta, nem para mim mesma? Como explicar cada detalhe de cada dia e transmitir as emoções que uma pessoa doente sente, com clareza? Poderia ter desistido, dito uma piada como normalmente faço e ter mudado de assunto. Lembro-me de ter pensado que se eu não tentasse explicar como poderia esperar que ela compreendesse? Se não consigo explicar isto à minha melhor amiga como conseguirei explicar o meu mundo aos outros? Tinha ao menos que tentar.

Nesse preciso momento a 'teoria das colheres' nasceu. Apanhei avidamente todas as colheres de cima da mesa e até das outras mesas. Olhei-a nos olhos e disse "aqui está, tens lúpus". Ela devolveu-me o olhar, confusa como qualquer pessoa ficaria se lhe oferecessem um bouquet de colheres. O metal frio das colheres tilintava nas minhas mãos enquanto eu as agrupava e lhas enfiava nas mãos.

Expliquei-lhe que a diferença entre estar doente ou ser saudável é ter de fazer escolhas ou pensar nas coisas que toda a gente faz sem pensar. Os saudáveis têm o luxo de uma vida sem escolhas, um dom que a maior parte das pessoas toma por garantido.
Quase todas as pessoas começam um novo dia com possibilidades ilimitadas e com energia para fazerem o que desejarem, especialmente as pessoas mais novas. Para a maior parte não se justifica a preocupação pelas consequências do que façam. 

A esta altura usei as colheres para explicar o meu ponto de vista. Eu queria algo que ela pudesse segurar e que eu lhe pudesse tirar, uma vez que as pessoas que ficam doentes sentem a perda da vida que tinham anteriormente. Se eu ficasse com o poder de lhe retirar as colheres então ela conseguiria compreender como nos sentimos quando alguém ou alguma coisa, neste caso lúpus, passa a ter controle.

A minha amiga agarrou as colheres com entusiasmo, embora não compreendesse o que eu estava a fazer, porque estava sempre disposta para uma brincadeira. Percebi que ela pensava que a qualquer momento eu iria dizer alguma coisa engraçada, o que normalmente fazia sempre que o tema da conversa era mais sensível. Mal sabia ela a minha vontade de ser séria.

Pedi-lhe que contasse as colheres. Perguntou porquê e eu expliquei que, quando és saudável, supões que o número de "colheres" é infinito. Mas quando tens de planear o teu dia, precisas de saber exactamente com quantas "colheres" podes contar.
Isso não quer dizer que não vás perder algumas ao longo do caminho mas, pelo menos, ajuda-te a saber com o que começas. Ela contou 12 colheres. Riu-se e disse que queria mais. Não, disse eu, percebendo que este pequeno jogo iria funcionar assim que ela se mostrou desapontada, sem termos sequer começado.
Durante anos eu quis mais "colheres" sem ter nunca descoberto como as obter, porque deveria ela tê-las? Aconselhei-a a segurar bem as suas colheres sem perder consciência  de quantas tinha e que não se esquecesse nunca que agora "tinha lúpus".

Pedi-lhe para fazer uma lista das tarefas do dia, incluindo as mais simples. Enquanto ela enumerava tarefas diárias ou apenas coisas divertidas para fazer, eu explicava que cada uma iria custar uma colher. Quando definiu como primeira tarefa do dia preparar-se para o trabalho, cortei-lhe a palavra e tirei-lhe uma colher. "Não! Não é só pores-te a pé! Tens que abrir os olhos e perceber que já estás atrasada. Não dormiste bem. Tens que rastejar para fora da cama e tens que preparar algo para comer antes de tudo porque tens que tomar os medicamentos, se não os tomares mais vale desistires de todas as tuas colheres para hoje e, já agora, para amanhã também."

Nessa altura a minha amiga percebeu que ainda nem se tinha vestido e já tinha perdido uma colher. O duche custou-lhe uma colher porque teve que lavar o cabelo e depilar as pernas. Levantar e baixar os braços tão cedo até pode custar mais do que uma colher mas eu não quis ser demasiado dura e preferi não a assustar logo no início do dia.

Vestir custou mais uma colher. Desmontei cada tarefa para lhe mostrar cada detalhe ao qual temos que dar atenção. Quando tens uma doença crónica não podes, pura e simplesmente, atirar as roupas para cima de ti. Expliquei que tenho que escolher as roupas que aguento, fisicamente, pôr em cima de mim. Se me doerem as mãos, botões estão fora de questão. Se tiver nódoas negras preciso de usar mangas compridas e se tiver febre preciso de uma camisola para me manter quente e por aí fora. Se for uma fase de queda de cabelo perco mais tempo a torná-lo apresentável. No fim precisas de 5 minutos para te sentires mal porque demoraste 2 horas a fazer tudo isto.

Penso que ela começava a compreender que, ainda nem tendo chegado ao emprego, já só tinha seis colheres. Expliquei-lhe então que ela tinha que escolher cuidadosamente o que iria fazer durante o resto do dia porque quando as colheres são gastas, estão gastas. Podes sempre pedir emprestadas algumas colheres de amanhã mas pensa no quão difícil será o amanhã com menos colheres... Também precisei de lhe explicar que, quando uma pessoa está sempre doente, vive com a suposição de que amanhã é o dia em que vem uma constipação, uma infecção ou qualquer do mais variados problemas associados à doença que tens. Então não queres ficar com um baixo número de colheres porque nunca se sabe quando vão ser indispensáveis. Não quis deprimi-la mas tinha que ser realista e, infelizmente, estar preparada para o pior, faz parte do dia a dia.

Fomos analisando o resto do dia e ficou a saber que não almoçar iria custar-lhe uma colher, assim como viajar de pé no autocarro ou até estar no computador muito tempo. Viu-se forçada a fazer escolhas e a pensar de forma diferente em todas as coisas do dia-a-dia. Hipoteticamente teve que escolher não fazer algumas tarefas para conseguir jantar nessa noite.

Quando chegamos ao fim do seu pretenso dia a minha amiga disse que estava esfomeada. Ela tinha dito que tinha de jantar mas só lhe restava uma colher. Se cozinhasse não ficaria com energia suficiente para lavar a louça. Se fosse jantar fora poderia ficar demasiado cansada para conduzir em segurança até casa. Expliquei então que nem sequer tinha acrescentado as náuseas o que, provavelmente, deixaria fora de questão o simples acto de cozinhar. Ela decidiu então fazer sopa, fácil... Eu disse então que são só sete da noite e já só tens uma colher, podes escolher fazer algo divertido, ou limpar o apartamento ou qualquer outra tarefa... mas não vais conseguir fazê-lo.

Raramente a vi emocionada e, quando percebi como ela se estava a sentir, pensei que talvez tivesse conseguido passar a mensagem. Não queria perturbar a minha amiga mas, por outro lado, sentia-me bem ao pensar que, finalmente, alguém perceberia pelo menos um pouco o que eu passava todos os dias.

Os seus olhos estavam cheios de lágrimas e ela perguntou baixinho "Christine, como consegues? Isto acontece-te todos os dias?". Uns dias são melhores do que outros; em alguns dias eu tenho mais colheres do que noutros. Mas nunca posso fazer de conta que o problema não existe e esquecer as minhas regras, tenho que estar sempre atenta. Entreguei-lhe uma colher que mantive escondida. "Aprendi a viver a vida sempre com uma colher extra, de reserva. É preciso estar sempre preparada."

É duro, o mais duro de aprender é abrandar e não fazer tudo. Até hoje continuo a lutar contra isto. Odeio sentir-me posta de lado, ter de escolher ficar em casa ou não fazer o que quero quando quero. Queria que ela sentisse essa frustração. Queria que ela compreendesse que tudo o que os outros fazem com tanta facilidade é, para mim, como se fossem centenas de pequenos trabalhos num só. Tenho que pensar no tempo que faz, na temperatura que sinto nesse dia e planear todo o dia antes de começar a fazer o que quer que seja. Enquanto as outras pessoas pura e simplesmente fazem coisas eu tenho de partir para o ataque e planear o dia como se fosse a estratégia para uma guerra. É essa a diferença entre ser saudável ou estar doente, a maravilhosa possibilidade de não ter que pensar e simplesmente fazer. Tenho saudades dessa liberdade. Tenho saudades de não ter que 'contar colheres'.

Depois de ambas nos emocionarmos conversamos mais um pouco sobre tudo isto e senti que a minha amiga estava triste. Talvez tivesse, finalmente, compreendido. Talvez ela tivesse chegado à conclusão que nunca iria poder dizer verdadeira e honestamente que compreende. Talvez, ao menos, não se queixasse tanto quando eu digo que não consigo ir jantar com ela ou porque tem que ser ela a conduzir até minha casa e não eu a ir à dela.

Enquanto saíamos do restaurante dei-lhe um abraço. Tinha uma colher na minha mão e disse "Não te preocupes. Isto acaba por ser uma benção, sou forçada a pensar em tudo o que faço. Sabes quantas 'colheres' as pessoas desperdiçam, todos os dias? Eu não tenho tempo para desperdiçar e escolhi passar este tempo contigo".

Desde esta noite passei a usar esta 'teoria das colheres' para explicar a minha vida a muitas pessoas. De facto, a minha família e os meus amigos referem-se às colheres a toda a hora. É como uma palavra de código para o que eu posso ou não posso fazer. Assim que as pessoas compreendem esta teoria parecem entender-me melhor, mas penso que também olham para a sua própria vida de maneira diferente. Talvez, na sua vida, não aceitem tudo como garantido.

Esta teoria é boa não só para compreender o Lupus mas também qualquer outra incapacidade ou doença. Quando faço alguma coisa, no verdadeiro sentido da palavra, dou um pedaço de mim. Isto acabou por se tornar numa piada pessoal; digo às pessoas, a brincar, que devem sentir-se especiais quando passo tempo com elas, porque elas ficam com uma das minhas 'colheres'.

© Christine Miserandino

Original @ But you do'nt look sick

Nota: colher em inglês é spoon; às pessoas com uma doença que as obriga a 'contar colheres' chama-se spoonies.
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